Histórico

Negras Memórias: Encontro
com a Velha Guarda

Sonia Regina Lourenço – Antropóloga, Coordenadora do Museu Nacional de Imigração e Colonização e Integrante do Comitê Gestor de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (CGPPIR), Prefeitura Municipal de Joinville.

O título deste encontro se remete à exposição Negras Memórias, Memórias de Negros – o Imaginário luso-afro-brasileiro e a herança da escravidão, que integrou o 2º Festival de Arte Negra de Belo Horizonte em 2003 que percorreu algumas cidades do Brasil. A exposição propôs um diálogo entre a história cultural e a trajetória antropológica das comunidades negras, artistas, pensadores, escritores, sacerdotisas, entre outros sujeitos, que construíram territórios identitários e um belo acervo das memórias dos afro-descendentes brasileiros.
O dia 13 de maio, data comemorativa da Abolição da Escravatura no Brasil, não significa apenas um marco do longo processo histórico e social em que a sociedade brasileira se viu diante da necessidade de reconhecer a dívida social e cultural para com a população negra brasileira escravizada durante longos séculos não só na América Latina, mas em todas as regiões do mundo, dentro e fora do continente africano. Resignificado na luta dos movimentos sociais, especialmente pelo movimento negro em todo o Brasil, 13 de maio como o dia 20 de novembro, data de mobilização e reflexão da Consciência Negra, é um contexto simbólico e político em que devemos rememorar os fatos históricos para nunca esquecer quem somos e para conhecer nossa sociedade.

Embora pareça que as lembranças e as memórias das populações e grupos sociais que viveram e/ou ainda vivem em situação de silêncio ou excluídas dos espaços culturais e da escrita da história, elas permanecem vivas nas narrativas, nas canções, na oralidade, na religiosidade, no parentesco, nos territórios e nas identidades culturais. Segundo o historiador Michael Pollak, “o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais” (1989:05). Pois, existem nas lembranças de muitos, “zonas de sombra, de silêncios e não-ditos” (op.cit., 1989: 08), que não reconhecem o direito à memória de povos, grupos e populações inteiras em detrimento da repetição da memória oficial ornamentada de discursos que procuram ocultar e fazer crer que o Brasil é o país que dorme em berço esplêndido, uma terra abençoada por Deus e bonita por natureza, uma sociedade que vive democraticamente sem discriminações e sem racismo.
Na “fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável”, reside a capacidade agentiva e criativa de outros sujeitos ao deslocarem o discurso da dominação para o discurso da transformação e inclusão social. O direito à memória é um direito de todos.  Por isso, convidamos a Velha Guarda da cidade para darmos início ao diálogo, ao encontro, à reflexão e à mobilização com o objetivo de construir visibilidade e espaços das memórias de negros constituidoras da história social e cultural da cidade de Joinville, pois Joinville também é negra.

Comitê Gestor de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial em Joinville

No dia 21 de novembro de 2009, o Prefeito Carlito Merss, assinou o Decreto n. 16.661, que cria e nomeia o Comitê Gestor de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial, vinculado ao Gabinete da Prefeitura Municipal. O ato de criação do Comitê integrou as atividades da Semana da Consciência Negra, organizada, promovida e realizada pela Fundação Cultural de Joinville, a Secretaria de Educação e as organizações sociais do movimento negro da cidade. O grupo que integra o Comitê Gestor é formado por sete representantes da Prefeitura de Joinville: Fundação Cultural de Joinville, Secretaria de Educação, Secretaria de Planejamento e Secretaria-Gabinete.

Dando continuidade a esta ação, na sexta-feira, dia 27 de novembro de 2009, o Prefeito Carlito Merss e o Ministro-Chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), Edson Santos, assinaram o Termo de Adesão de Joinville ao Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualdade Racial (FIPIR). O FIPIR promove uma ação continuada entre os governos federal, estadual e municipal com o objetivo de articular, formar, planejar e executar ações de promoção da igualdade racial e de combate às desigualdades raciais e sociais. O município de Joinville passa a integrar as ações de políticas públicas da SEPPIR ao lado dos mais de 600 municípios que aderiram ao Fórum.

As políticas públicas em consolidação da SEPPIR são a expressão da conquista do movimento negro no Brasil em sua trajetória histórica de lutas, reivindicações, discussões, demandas e na elaboração de propostas que o governo brasileiro incluiu no campo mais amplo das políticas públicas governamentais. Todas as ações de políticas públicas foram elaboradas a partir da criação do Grupo de Trabalho Interministerial para a formulação do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial pelo Decreto de 08 de novembro de 2005. O trabalho deste grupo resultou na elaboração pela SEPPIR, baseada na I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR) e nas políticas desenvolvidas na estrutura do Governo Federal brasileiro, na criação do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial. O Plano recomenda e insta princípios que constituem a base para a consolidação de políticas de promoção da igualdade racial:
1-               Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial – na qual a discriminação foi definida como  “toda exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor ou descendência ou origem étnica, que tenha como objetivo anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condições) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico e social”;
2-               Brasil sem Racismo – “documento elaborado para o programa de governo indicando a implementação de políticas de igualdade racial nas áreas de trabalho, emprego e renda, cultura e comunicação, educação e saúde, terras de quilombolas, mulheres negras, juventude, segurança e relações internacionais”;
3-               Declaração e Plano de Ação de Durban – “Produto da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e as Formas Correlatas de Intolerância, os governos e organizações civil de todas as partes do mundo, foram conclamados a elaborar medidas globais contra o racismo, a discriminação, a intolerância e a xenofobia”.
As ações do Governo Federal começaram a construir estas políticas de inclusão social a partir da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) no dia 21 de março de 2003. A data é simbólica porque em todo o mundo, celebra-se o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial.

A finalidade da SEPPIR é promover a igualdade e a proteção dos direitos dos indivíduos e grupos étnico-raciais afetados pela discriminação, desigualdade e intolerância, com ênfase na população negra; acompanhar e coordenar políticas de diferentes ministérios e outros órgãos do Governo brasileiro para a promoção da igualdade racial; articular, promover e acompanhar a execução dos diversos programas de cooperação com organizações públicas e privadas, nacionais e internacionais; promover e acompanhar o cumprimento dos acordos e convenções internacionais assinados pelo Brasil relacionados à promoção da igualdade e combate à discriminação étnico-racial; auxiliar o Ministério das Relações Exteriores nas políticas internacionais, no que se refere à aproximação de nações do continente africano.

Todas as políticas públicas em consolidação buscam focalizar áreas do trabalho, emprego e renda, cultura e comunicação, educação e saúde, terras de comunidades quilombolas, mulheres negras, segurança e relações internacionais.
Na área da educação, o Congresso Nacional aprovou a Lei No 10.639 em 2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), e torna obrigatório o ensino de história e cultura da áfrica e das populações negras brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio de todo o país. A Subsecretaria de Políticas de Ações Afirmativas da SEPPIR (SubAA), junto com o Ministério da Educação, formulou o Plano Nacional de Implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O Plano estabelece metas e estratégias para a ampla doção da Lei No 10.639 e enfatiza que os poderes executivos, legislativos e dos conselhos de educação municipais, estadual e federal devem trabalhar em três linhas principais: a formação dos professores, a produção de material didático e a sensibilização dos gestores da educação.

Levar para as salas de aula, a reflexão e o conhecimento da história do Brasil é possibilitar aos educandos o conhecimento de sua própria história como sujeitos e o direito à memória. Estudar a diáspora africana e o processo da imigração compulsória, aquela que escravizou diferentes povos africanos nas Américas e dentro da própria África, como o apartheid, é propiciar à juventude brasileira, as condições reais para a compressão da diferença e das identidades. Mais que isso, a construção de uma educação cidadã que priorize os direitos humanos do qual o Brasil é um país signatário, se dá com a consolidação de políticas públicas, como a promoção da igualdade racial para a população negra, indígena, cigana, palestinos, entre outros, que façam valer a igualdade de direitos de nossa Constituição Federal de 1988.

Há segmentos da sociedade brasileira que não reconhecem a importância da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena no ensino fundamental e médio, públicos e privados, porque acreditam que isso seria a produção de uma racialização do Brasil.
Este discurso encontra-se baseado na ideologia de que o Brasil é o país da “democracia racial” e da “mestiçagem”.  No entanto, a sociedade brasileira é diversa e pluritétnica como todos os países do mundo. As pesquisas de diferentes universidades e instituições mostram que cada vez mais, diferentes segmentos, grupos ou povos se declaram pertencentes a uma etnia. São narrativas étnicas que procuram ocupar representação cultural no âmbito das políticas culturais, nas esferas de poder ao redor do mundo. A raça ainda é uma categoria operante entre os brasileiros, mas uma categoria social, que, paradoxalmente ao lado da ideologia da “democracia racial”, produz índices de desigualdades sociais, culturais e econômicas inaceitáveis. Em outras palavras, a idéia de raça funciona como um dispositivo cujos efeitos são as práticas de racismo, exclusão e violência.

Todas as formas de exclusão e tentativas de tornar invisíveis a presença e a participação dos afro-descendentes e dos povos indígenas na constituição do Brasil fornecem as condições reais para que se construa na esfera pública do Estado e da sociedade civil um debate mais amplo na constituição de uma sociedade que assuma sua condição de ser diversa e plural.

As pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do IBGE têm apontado o impacto do racismo na qualidade de vida da população negra e revelando a ideologia da “democracia racial” brasileira. Todos os dados analisados no estudo do IBGE “Síntese de Indicadores Sociais – Uma análise das Condições de Vida da População Brasileira”, publicado em 2007, a desigualdade persiste entre brancos e negros. O estudo revela que entre os 10% mais pobres – na faixa etária de 10 anos ou mais – com rendimento de trabalho, o percentual de brancos era de 26,1% e de 73,2% para pretos e pardos. Já entre o 1% dos mais ricos, 85,7% eram brancos e 12,4%, pretos ou pardos.

Em números absolutos, em 2006, entre cerca de 15 milhões de analfabetos brasileiros, mais de 10 milhões eram pretos e pardos, indicando a gravidade do problema da desigualdade social produzida especialmente pelas questões raciais.  A desigualdade está na diferença entre os jovens de 18 a 24 anos, estudantes de curso superior, em que o percentual de brancos foi de 56% e o de pretos e pardos de, apenas, 22%. Estes índices permitem reconhecer como a categoria “raça” produz o mundo real, desmascarando a visão colonialista de que o Brasil vive uma “democracia racial”. De fato, a democracia no espaço público, se alcança nos avanços na consolidação de políticas públicas reais ao povo brasileiro.

Segundo os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), no Brasil há cerca de 502.000 crianças, a maioria negra, trabalhando como empregadas domésticas e muitas que começaram a trabalhar com apenas 5 anos de idade.  Em relação às mulheres, cerca de 36,3 milhões são afro-descendentes segundo os dados oficiais, embora, sabemos o quanto é difícil a auto-declaração negra em uma sociedade em que ser mulher, negra e pobre, é estar diante de uma realidade que exclui pela raça, classe e gênero. Enquanto a expectativa de vida para as mulheres brancas é de 71 anos, para as mulheres negras é de 50 anos (IBGE). Basicamente em todos os índices sociais, a população negra ainda não foi contemplada com a igualdade de condições.

Todas as políticas públicas a serem implementadas e consolidadas com o trabalho do Comitê Gestor de Políticas de Promoção da Igualdade de Joinville têm como base estes princípios conectados às políticas internacionais (ONU, UNESCO, OIT, OMS, entre outras) as quais o Brasil é um país signatário. Vale dizer que o Comitê Gestor é uma ação governamental que inicia seu trabalho primeiramente dentro da rede intersetorial do município, para, depois, dar continuidade aos diálogos com a sociedade civil no mapeamento das demandas sociais e culturais da cidade.   A perspectiva que orienta o Comitê é pautar as políticas públicas em conjunto e em conexão com a realidade da população negra da cidade, com o povo de santo dos terreiros de Candomblé e Umbanda, muitas vezes vítimas da intolerância em relação às religiões de matriz-africana, com os grupos culturais incluindo a juventude, as organizações do movimento negro, as Universidades e outros coletivos da cidade.

A criação do Comitê Gestor de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial de Joinville reafirma o compromisso da gestão pública municipal com a construção de uma política de governo voltada também para a população negra e de outros segmentos discriminados.  O direito à igualdade de condições e de viver em uma sociedade que respeita e aceita a diferença, é mais do que viver com a tolerância. As pessoas, grupos e povos precisam ultrapassar a ética da tolerância para aprender a conviver com a diversidade e o respeito aos direitos humanos, nossa humanidade mais desejada.

Comitê Gestor de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial – Integrantes:
Gabinete da Prefeitura Municipal }
de Joinville
Rakel de Queiróz – Secretaria de Educação
Vanessa da Rosa – Secretaria de Educação
Sonia Regina Lourenço – Fundação Cultural de Joinville
Marta Heinzelman – Fundação Cultural de Joinville
Giselle Melissa dos Santos – Secretaria de Planejamento
Silvia Moreira da Silva – Secretaria de Planejamento